8 Dias Dentro do Sistema de Saúde do DF
Você já deve ter ouvido falar: a culpa é do sistema; ou: o sistema caiu; ou ainda: o sistema tá fora do ar. Bem, tudo isso é verdade e pode acontecer, mas como não entendemos de sistema e dependemos dele muitas vezes, ficamos sem saber até onde são fatos reais as expressões acima citadas.
Entrei no Sistema devido a este acidente no dedo indicador esquerdo. Pra começar, o acidente ocorreu as 16h40 do dia 25/02/2021, no Riacho Fundo II, após a lixadeira que usava (com disco de corte) travar na madeira e saltar, atingindo rapidamente a mão esquerda. Foi tudo muito rápido. Quando olhei para a mão e vi o corte, fiquei apavorado, pois na ocasião eu acreditava que perderia o dedo. Tirei a blusa rapidamente e enrolei a mão após juntar os dedos. Vesti outra camisa, coloquei a mão junto ao peito e como estava só, encostei o portão da oficina, peguei o carro e me dirigi ao Hospital de Samambaia.
Tentativa 1 de entrada no Sistema
Após percorrer 7,3km, cheguei ao Hospital Regional de Samambaia. Na recepção e sem que saíssem do lugar o atendente disse que não atendia meu caso. Pedi que algum enfermeiro olhasse minha mão e fizesse um pré-atendimento. Fui encaminhado a sala do lado e a enfemeira confirmou: aqui não atende seu caso. Aqui é só Covid.
Insisti por atendimento, mostrei meu dedo e ela fez um pré-curativo com gase e atadura e me liberou. Pedi que a ambulância me levasse. Ela disse que nâo podia e que eu pedisse Uber. Bem, peguei meu carro mesmo e segui pro HRT.
Durante esse percurso, liguei pra esposa, casa e amigos próximos.
Tentativa 2 de entrada no Sistema
Foram mais 6,1km, até o Hospital Regional de Taguatinga. Cheguei as 17h02 no Pronto Socorro. Dei entrada só e fui pra emergância. Já dentro do sistema, começa o tempo de espera. As 20h00, sou atendido, e após relatar o ocorrido, a ortopedista pede pra eu ir fazer um Raio X e voltar. Faço e volto, mas tive que entrar em outra fila de espera. Entre a entrada no Hospital e o atendimento, chegou minha esposa e meus amigos Gerson e Washington. Comi alguma alguma coisa e continuei aguardando.
O Atendimento
Por volta das 21h30, fui atendido pelo Dr. Lucas, que examinou o Raio X, e me encaminhou para a sala de curativo e gesso. Lá fez toda assepsia do ferimento, seguido da sutura. Após o procedimento fui pro antibiótico e pro analgésico. Ele me informou os riscos da lesão e a possibilidade nova cirurgia para colocação de pino, deixando claro as sequelas devido a gravidade da lesão.
Volto para o consultório com o Dr. Lucas e ele anuncia a internação de 4 a 7 dias. Lança no computador o relatório de atendimento e oficialmente as 22h estou dentro do Sistema. Internado! Aqui deixo minha avaliação sobre o Dr. Lucas Nogueira. Foi educado, preciso, empático, paciente e extremamente profissional.
Diário do Sistema
Recepção e Estadia
Recebo o Equipo de Soro e me assento em uma cadeira, na sala de medicamento, pois não havia leito pra mim e mais dois pacientes, um com dores na barriga e outro paciente cardíaco. Bem, fiquei quieto tomando o medicamento, enquanto o paciente com problema na barriga, reclamava do atendimento, exigindo respeito e celeridade. Sobrou até pro presidente da república. Até que tomado de muita ira, tirou o equipo do braço e foi embora.
Por volta das 23h30 chamei a enfermeira, pois estava desmaiando. Sem força e suando frio. O Dr. Lucas foi chamado, e autorizou que eu uzasse seu consultório como leito e assim pude melhorar e dormir em paz.
As 00h47 do dia 26/02, sou acordado pelo Pr. Alfredo (meu pastor), que foi veio deixar minha bolsa, com roupas e tudo que eu precisava. Conversamos por alguns minutos, oramos e ele foi embora e eu dormir. Fui muito bem tratado nesta noite.
A Enfermaria
Enfim na enfermaria, então dentro do Sistema. Um lugar falado, comentado e que agora será explorado de fato. Minha passagem por aqui está programada para quatro a sete dias. Então vamos lá!
A Maca
Não havia maca para ele na enfermaria. Tive que dormir no consultório na primeira noite, mas para isso, antes das 6h30, deveria desocupar o local para atendimento médico. Dentro da enfermaria devíamos ficar de olho aberto até desocupar uma maca. Aí descobri que as macas eram diferentes. Tem macas de todo jeito, inclusive do Bombeiro e do Samu. Felizmente na primeira manhã desocupou uma do Bombeiro e antes que ela fosse removida, eu a peguei. Agora eu estava instalado e com maca. A minha estava no meio do corredor, pois as laterais já estavam cheias. Fiquei no corredor dois dias, até desocupar uma vaga na lateral.
Colegas de Leito
Reunidos ali, uma coisa é fato: tudo se nivela no leito. Condição social, acadêmica, religiosa, cultural e política. Não importa; todos viram pacientes, e de fato preciam ser, não tem alternativa. Até porque se você sair furioso e não tiver outra alternativa de atendimento, você voltará meio que redimido, como foi o caso do paciente do primeiro dia, que saiu bravo e voltou mais sossegado. Este é o Carlos André, e ficaríamos juntos ali por sete dias.
Não dá pra falar de todos, pois eram mais de 30 e todo dia tinha rodízio, de quem passava de estágio ou recebia alta.
Cada um é um
Os “coroas de boa” ficavam do meu lado direito e ali a alegria reinava, acima dos 60, eles se divertiam, cotavam piadas, contavam casos e combinavam o que fazer pós saida. A alimentação deles era balanceada e diferente das demais, até porque cada caso é um caso. Só lembro do seu Francisco, mas eram três. Sairiam no quinto dia de minha estada.
Os que lembro o nome são: Alessandro, ex-colega de trabalho no governo, engenheiro, seu problema era pedra no rim; continuou após minha saída. Wanderson, torção no tornozelo, mas devido uma celulite que desceu para a região, seu diagnóstico estava um mistério. Carlos André, vesícula. Tiago, vigilante e motoboy nas horas vagas, fratura na canela e luxação no braço direito, num acidente de moto. Esses eu os conheci pelo nome e com eles conversamos muito. Mas tem Os Franciscos, José Reginaldo, Jânio, Denis Santos, Alysson de Oliveira, entre outros.
Problemas variados, mas todos pacientes. Em um de meus passeios, conheci seu Alexandre, 60 anos, motorista de aplicativo. Em uma de suas viagens sentiu tremores e formigações nos braços, e descobriu na UPA o princípio de infarto. Ele precisa de 3 pontes safenas e já é hospede do HRT a 2 meses, aguardando fila de cirurgia. Conversando com ele até fiquei aliviado, pois os sete dias que eu já estava parecia não ter fim.
A Refeição
Nesse quesito, não há queixa pela falta, talvez pelo sabor, dependendo de cada um. A Cook Brasil, resposável pela alimentação, cumpria bem o cardápio e os horários. Os atendentes muito educados. 8h café da manhã, 10h Complemento, 12h Almoço, 16h Lanche, 18h Jantar e 20h ceia. Cada dia um cardápio e nesse sentido tudo positivo.
A Maca II
Segundo dia e eu bem acomodado numa confortável maca, de repente entram dois Bombeiros percorrendo a enfermaria, olhando de maca em maca, até chegar na minha. O bombeiro me abordou sobre a possibilidade de pegar a maca, no que eu respondi: preciso dela, ficarei internado por mais cinco dias. Os bombeiros conversaram entre eles e sairam. Voltaram algum tempo depois, com outra maca do modelo mais antigo da própria cooporação e trocaram comigo já que eu estava na última geração de maca, utilizada em regates. Percebi que a situação era corriqueira e que tanto o Samu quanto o Bombeiro, cedem suas macas entre as emergências para aliviar a falta na enfermaria. Falta de leito não é exclusividade do COVID 19 não, avisem ao Secretário de Saúde.
Equipes de Enfermagem
São muitos os enfermeiros, mais pouquíssimos usam identificação, ou seja na maioria das vezes temos que perguntar o nome pra saber de quem se trata. No meu ponto de vista isso é uma falha grave, pois não sabemos de fato se quem está nos atendendo é de fato quem deveria ser. De qualquer maneira fica claro, que na área saúde o ideal seria trababalhar os vocacionados, pois e diferença no atendimento é explícita, de quem exerce a enfermagem por vocação e quem entrou na missão por dinheiro e estabilidade. Posso destacar por nome as enfermeiras Simone, Ana Beatriz, Bruna e Jesuíta. Tem outras duas mas a falta identificação me impede de citá-las.
Os plantões noturnos, dos sete que lá passei, três foram como filme de zumbi, após 23h, sumiam todos, a ponto de numa dessas madrugadas uma médica de plantão ficar alucinada, pagando uma geral pra equipe, que deixou um paciente cardíco sozinho e a máquina apitava, registrando suas pulsaçõe cardíacas a 160. Ele dizia: “Se acontecer alguma coisa vocês vão pagar, ele vai se ver comigo”. E andou no meio da emergência, puxando pelo braço um moça. Foi e voltou com ela. Isso foi as 4h, na madrugada de dia 2 de março.
Suspeita de COVID
Numa bela tarde, a emergência recebeu um paciente com supeita de COVID e o ambiente ficou tenso. Logo todos os pacientes ficaram no ti-ti-ti. Foi mais ou menos umas duas horas essa situação e sem que fosse confirmado ou negado o paciente foi removido com seu devivo tubo de oxigênio. Mais um equívoco administrativo.
Banho de Sol
Sempre que eu podia, saia da enfermaria para arejar a mente, respirar um ar e pegar um sol. Pra isso eu ia ao corredor principal e descia a rampa, para acessar a área aberta do hospital, onde fica a capela. Fiz isso quase todos os dias e como foi bom. Pena que nem todos podem fazer o mesmo.
O 4º Andar
Sabe aquela sensação que você sente, enquanto espera uma boa notícia. Seja uma promoção, seja o resultado de uma prova, ou qualquer coisa boa. Esse era o sentimento de quem tava na emergência, porque o 4º andar, era a porta de saída da emergência e a possibilidade de cirurgia. Então essa euforia tomava conta de nós, quando entrava os servidores do NARP (Núcleo de Acolhimento e Remoção de Pacientes). Quando eles gritavam o seu nome era uma alegria. Mas nem tudo são flores.
Os Requisitos desconhecidos
Na minha terceira manhã, o NARP me chamou: Francisco Vicemar Medeiros. Opa! Tô aqui! Me levantei rapidinho e vamos. Só que não! Me perguntaram: tirou raio X do tórax? Tá de jejum? Fez o Eletrocardiograma? Não para as três perguntas. Então você não vai.
Simples assim, fui aprendendo na marra que tá dendro do sistema não te garante nada, você tem que advinhar o que fazer pra mudar de fase, pois ninguém te orienta. Lamentável! Bom fui atrás dos meus interesses e fiz o eletro e o raio X. Agora só faltava o jejum, mas a equipe médica tinha que pedir, o que significava mais espera. Por isso os internados são chamados de paccientes, pois tem que ser.
Aviso prévio
A equipe do NARP, me avisou para fazer jejum no meu terceiro dia de internação que no dia seguinte eu iria a cirurgia. Então a meia noite encerrei minha ingestão de comida e bebida e o dia seguinte aguardei com boa expectativa a ida o 4º andar. Bom, isso nunca aconteceu. Fiz três jejuns, a pedido e nenhum deles foi confirmado com minha remoção.
Outra ocasião a Dra. Iara, veio me avaliar para o pré-operatório. Mediu minha pressão, meus batimentos e falou que lançaria no sistema meu pedido de raio X do tôrax, pois o primeiro que fiz não ficou bom. Não lançou e no dia seguinte tive que pedir a outro médico, que o fizesse. Essa situação é a demonstração da falta de respeito com o paciente e um descompasso na gestão de processos internos do HRT.
O Ciclo da Embromação
Todas as manhãs passam pelos leitos, um grupo de pessoas da saúde; médico, residentes e alunos de vários faculdades, como UCB, UnB, LS, São Lucas e PUCGO. Essa turma chega no seu leito e o médico pergunta: o que foi isso Francisco, aí o Francisco fala, ele pega o Raio X, dá uma olhada e diz: tem que ficar mais sete dias de antibiótico ou simplesmente tira você do jejum que o outro mandou fazer no dia anterior.
Outra prática é um dos alunos lê o seu diagnóstico: “Francisco tem 48 anos, cortou a cartilagem do metacarpo com serra de marceneiro, foi atendido dia 25 e passou por um procedimento cirúrgico de alinhamento da falange com o metacarpo. Feito a sutura, foi encaminhado para medicação e possivelmente faça nova cirurgia para colocação de pino”. Todos ouvem e o médico ou o professor que os acompanha, olha o raio x e vão pro próximo leito.
Todos os dias esse cíclo.
Indiferença
Depois de tantos desencontros em tão poucos dias, resolvi no sexto dia não dá mais importância a essas rotinas matinais e vespertinas. Do jeito que eles entravam e passavam pra mim não alterava, ia esperar o tempo que fosse, crendo em Deus e mantendo a tranquilidade. Foi assim no sétimo dia, descansei totalmente. Não me empolguei, não me estressei e não jejuei.
Alta Médica
A boa notícia chegou na manhã do oitavo dia. O mesmo Dr. Lucas que me operou e me internou lá no início, entrou no momento da embromação, mas como já havia um grupo na enfermaria, não seria o caso. Assim que ele chegou em meu leito, já fui pedindo pra ele me dar alta médica. Ele me disse bem sereno, calma moço, vou te examinar no final da inspeção.
Meu nome foi gritado uma hora depois. Fui até a sala de gesso, onde ele olhou com outro médico especialista meu ferimento e o trabalho realizado. Lavou, limpou e fez novo curativo. Descartou nova cirurgia e me deu alta as 10h dia 4/3.
Saí de lá sem conhecer o inigmático 4º andar; mas melhor que o 4º andar, foi poder ir pra casa com minha esposa, que me acompanhou todos os dias.
Gratidão
A Deus toda honra e glória, a minha esposa Dayana, aos profisionais que cuidaram de mim, aos colegas de leito, aos amigos Gerson, Pr. Alfredo, Washington, Everton, Gilmar, Anderson, Márcio, Felisbel, Sônia.
Graças a Deus que o senhor cuidou de vc todo esse tempo! Amei a narrativa.
Pois é Vera. Louvado seja Deus. Estou bem melhor e a cicatrização está completa. Apenas os movimentos um pouco restrito, mais vais melhorar. O narrado é a pura realidade do Sistema.
Vicemar meu irmão, Deus o fez forte mais uma vez para superar mais esta fase de sua vida. Que todas essas dádivas sirvam de combustível para sua caminhada com Cristo. Obrigado pelo compartilhamento de sua experiência. Esta percepção ajuda-nos a saber que nossa confiança no Senhor é que nos mantém de pé e vitoriosos nessa jornada. Grande abraço!
Amém pastor. Creio assim e cada experiência vivida, fica cada vez mais claro a mão de Deus. Obrigado por participar.
Deus e maravilhoso, com muita luta e sofrimento no sistema vc venceu, fica em paz meu amigo.