Resposta do PM deve ser proporcional à ameaça, diz coronel do Choque

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São Paulo — O responsável pelos batalhões de choque da Polícia Militar (PM) de São Paulo, coronel Valmor Racorti, foi procurado pelo Metrópoles para falar sobre o artigo em que questiona a eficiência das câmeras corporais e se elas “mentem”. Tanto as perguntas quanto as respostas foram feitas por escrito. O militar também diz que a reação do policial deve ser proporcional à ameaça recebida.

Racorti é responsável por batalhões como as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), Comando de Operações Especiais (COE) e Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). Na entrevista, o coronel foi questionado, entre outros, sobre o porquê de as imagens capturadas por câmeras servirem de provas para praticamente tudo, mas não para situações que envolvam policiais, entre outras perguntas.

Além das respostas, Racorti enviou as referências bibliográficas nas quais se baseou e em estudos que justificariam as suas posições. O coronel é bacharel em direito e tem uma extensa carreira na PM, ocupando diversos cargos de comando ao longo de sua vida na corporação. Também é instrutor pela Universidade do Texas do Programa ALERRT (“Advanced Law Enforcement Rapid Response Training”, “Treinamento Avançado de Resposta Rápida para Aplicação da Lei”, em português).

O senhor é contra o uso obrigatório de câmeras corporais nas ações dos batalhões especiais da PM? E na corporação como um todo?
Como policial militar e comandante dos Batalhões de Choque, sigo rigorosamente as diretrizes institucionais estabelecidas. Paralelamente, como pesquisador especializado em tomada de decisão sob estresse, busco compreender profundamente as ferramentas e tecnologias que podem influenciar o desempenho operacional. O artigo que publiquei não expressa uma opinião pessoal, mas sim uma análise baseada em estudos internacionais que demonstram as limitações técnicas e interpretativas das câmeras corporais no contexto policial, com ênfase no trabalho que, pela primeira vez, comprovou a diferença entre as câmeras e a percepção humana.
A recente pesquisa que foi base do meu artigo, intitulada “The Eyes Have It! Functional Field of View Differences Between Visual Search Behavior and Body-Worn Camera During a Use of Force Response in Active-Duty Police Officers”, conduzida por Nicholas P. Murray, William Lewinski, Craig Allen, Gustavo Sandri Heidner, Michael W. Albin e Robert Horn (2022), trouxe a primeira comprovação científica de que as câmeras corporais não capturam todas as informações disponíveis para o policial durante uma ocorrência. O estudo utilizou rastreadores oculares e câmeras corporais em experimentos simulados, concluindo que o vídeo captado pelas BWCs [câmeras corporais] não reflete integralmente o campo de visão e a percepção do policial. Isso reforça as diferenças entre o que o agente vê e o que é registrado pela câmera, evidenciando o risco de interpretações distorcidas.

Minha abordagem não rejeita o uso de câmeras corporais, mas busca compreender sua eficácia real e o melhor uso operacional dessa tecnologia.

A implementação de câmeras corporais em operações policiais é uma estratégia que vem sendo amplamente debatida. O estudo “Police Body-Worn Cameras: What Have We Learned in Ten Years of Deployment?” da National Police Foundation (2020) aponta vários desafios e limitações associados ao uso de câmeras corporais (BWCs), incluindo custos elevados, limitações técnicas, impacto operacional, desafios legais e implicações na percepção pública.
Em algumas cidades dos EUA, os custos de operação das BWCs superaram os benefícios esperados, gerando dúvidas sobre sua viabilidade financeira. Países como Canadá e Reino Unido estão reavaliando o uso obrigatório de câmeras corporais devido ao alto custo de armazenamento de dados e a ausência de evidências conclusivas sobre sua eficácia (Police Executive Research Forum, 2023).
Além dos custos, diversas forças policiais especiais ao redor do mundo optam por não utilizar câmeras corporais em suas operações devido à natureza sensível e sigilosa de suas missões. Por exemplo, unidades como o Special Air Service (SAS) no Reino Unido, a Joint Task Force 2 (JTF2) no Canadá, e o Grupo de Intervenção da Gendarmaria Nacional (GIGN) na França não adotam o uso de câmeras corporais. As principais razões para essa escolha incluem a necessidade de manter táticas confidenciais, proteger a identidade dos operadores e evitar comprometer a eficácia operacional. as unidades táticas e forças especiais realizam operações sensíveis e de alto risco, onde a gravação pode comprometer táticas sigilosas, expor agentes e afetar a eficácia operacional.
Diversos estudos internacionais recentes sobre o uso de câmeras corporais por policiais apresentaram resultados inconclusivos quanto à sua eficácia. Uma revisão abrangente de 70 estudos conduzida pelo Instituto Nacional de Justiça dos Estados Unidos (2018) constatou que a maioria das pesquisas não demonstrou efeitos consistentes ou estatisticamente significativos das câmeras corporais no comportamento policial.
Outras pesquisas, como Branco, MD, & Malm, A. (2020) em “Policiais, câmeras e crise: O potencial e os perigos das câmeras corporais usadas pela polícia” e o Departamento de Polícia da Cidade de Nova York (2021), em “Câmeras junto ao corpo: política de impacto e uso”, não encontraram redução estatisticamente significativa no uso da força nem no número de queixas feitas contra policiais. Além disso, evidências limitadas para processos judiciais não demonstraram que as BWCs influenciam de maneira significativa a condenação ou absolvição de suspeitos.
Desde 2017, quando fui Comandante do Gate, implementei câmeras corporais no Grupo de Ações Táticas Especiais, antes mesmo do programa institucional da Polícia Militar. O objetivo dessa implementação foi a análise de ocorrências para lições aprendidas e aprimoramento de protocolos. Essa experiência demonstrou que as câmeras podem ser ferramentas valiosas, mas seu uso deve ser estratégico, considerando o contexto operacional e as limitações tecnológicas.

As câmeras corporais podem ser úteis, mas não são uma solução universal para transparência e responsabilidade policial. A implementação dessa tecnologia deve ser baseada em critérios técnicos e operacionais sólidos, levando em conta custos, limitações técnicas e impacto no desempenho dos policiais.

Portanto, a discussão sobre o uso obrigatório de BWCs em unidades especiais e na Polícia Militar como um todo precisa ser pautada em evidências científicas, garantindo uma decisão equilibrada entre transparência, segurança operacional ,custos e viabilidade prática.

Se imagens capturadas por câmeras servem como prova para quase tudo, de homicídios em geral a acidentes de trânsito, por que seria diferente em relação a ações nas quais PMs estejam envolvidos?
A confiabilidade das imagens captadas por câmeras corporais não deve ser analisada apenas pela sua capacidade de registrar eventos, mas sim pelo modo como essas imagens são interpretadas. Embora as gravações sejam um recurso valioso para investigações, elas possuem limitações técnicas e cognitivas que podem influenciar sua análise e interpretação em contextos operacionais de alta complexidade.
Estudos internacionais demonstram que gravações de câmeras corporais não capturam toda a experiência perceptiva de um policial durante uma ocorrência, pois possuem um campo de visão limitado, não registram sensações táteis, auditivas e cognitivas e não refletem a tomada de decisão sob alto estresse.
Um dos principais desafios na análise dessas imagens está na desconexão entre a gravação e a percepção real do policial no momento da ação. O estudo do Force Science Institute (2024) demonstrou que o cérebro humano processa ameaças em tempo real de maneira diferente de quem assiste a uma gravação posteriormente, em ambiente controlado e sem risco iminente. Esse estudo concluiu que decisões tomadas sob alto estresse são influenciadas por heurísticas rápidas e padrões de ameaça reconhecidos pelo policial no momento, fatores que não podem ser completamente reproduzidos em uma gravação.
Além disso, a posição e o campo de visão da câmera corporal influenciam diretamente a interpretação das imagens. O estudo de Murray et al. (2024) demonstrou que câmeras corporais captam apenas uma fração do que o policial realmente vê, pois estão fixadas no uniforme e não seguem os movimentos oculares do agente. Em muitos casos, elementos críticos para a decisão do policial – como gestos sutis do suspeito, objetos fora do enquadramento ou a linguagem corporal de terceiros – não são capturados pela gravação, mas estavam plenamente visíveis para o policial. Outro fator relevante é o efeito da câmera lenta e do replay. A pesquisa de Jones et al. (2019) demonstrou que quando espectadores assistem a vídeos policiais em câmera lenta ou com replay, tendem a superestimar o tempo de reação do policial, criando uma ilusão de que ele teve mais tempo para decidir do que realmente teve. Esse efeito pode levar a interpretações equivocadas em investigações ou julgamentos judiciais, distorcendo a realidade sobre a rapidez necessária para tomar decisões em situações de risco. Além das limitações técnicas, também existem fatores psicológicos e perceptivos que precisam ser levados em conta ao analisar gravações. O estudo de Turner & Kearon (2019) reforça que a posição da câmera pode influenciar a interpretação da ação policial, fazendo parecer mais ou menos agressiva dependendo do ângulo captado. Esse fenômeno é conhecido como “viés da perspectiva da câmera”, e pode gerar avaliações subjetivas que não correspondem à realidade da ocorrência.

Em ocorrências policiais, a tomada de decisão é feita sob alto estresse e com tempo reduzido. Diferente de câmeras de segurança estáticas que registram crimes de forma passiva, as câmeras corporais registram apenas uma parte do cenário, e frequentemente não mostram ameaças que estavam fora do enquadramento, mas visíveis ao policial.

DeCarlo, Dlugolenski e Myers (2024) reforçam que análises feitas apenas com base em gravações podem distorcer a realidade, pois a gravação não reproduz a percepção completa que o agente teve no momento do evento.
As câmeras corporais são um recurso valioso para investigações, mas não devem ser tratadas como evidências absolutas. Diversos estudos demonstram que essas gravações possuem limitações técnicas e perceptivas que podem influenciar sua interpretação. O correto é avaliar as gravações em conjunto com outros elementos de prova, incluindo testemunhos, análise pericial e contexto operacional, para evitar conclusões precipitadas que não refletem a realidade do evento.

No artigo, o senhor menciona o fato de que policiais tomam decisões sob estresse, muito rapidamente, e que isso é muitas vezes desconsiderado por quem vê uma imagem gravada pelas câmeras, que julgaria o fato de maneira mais racional (com uso do neocórtex), em um ambiente tranquilo. O senhor defende que o estresse seja atenuante ou justificativa? Esse argumento não poderia ser usado também por qualquer cidadão, como um motorista numa briga de trânsito?
O estresse não é uma justificativa absoluta, mas um fator neurobiológico essencial a ser considerado na avaliação das decisões policiais em situações de alto risco. A ciência do comportamento humano demonstra que, sob ameaça iminente, a capacidade de processamento racional diminui, e o cérebro ativa respostas automáticas de sobrevivência.
O estudo FBI In The Line of Fire (1997) analisou policiais que sofreram ataques violentos e constatou que, em situações críticas, o tempo de resposta disponível é tão reduzido que os policiais não conseguem acessar plenamente o neocórtex (responsável pelo pensamento racional e estratégico). Em vez disso, o cérebro ativa mecanismos instintivos mediados pelo sistema límbico e pelo circuito do medo da amígdala cerebral, que priorizam a autopreservação.
Esse fenômeno é amplamente estudado na psicologia policial. Graham v. Connor (1989), um caso histórico da Suprema Corte dos EUA, reforça que decisões policiais não podem ser julgadas retrospectivamente, pois quem analisa um vídeo em ambiente controlado não vivencia o estresse, a urgência e os riscos da situação real. O tribunal estabeleceu que a ação do policial deve ser analisada conforme as circunstâncias do momento e não sob um olhar racional e distante no tempo.
A comparação com um civil envolvido em um confronto de trânsito ignora três diferenças fundamentais. Primeiro, o policial tem obrigação legal de agir diante de uma ameaça, enquanto um motorista pode optar por evitar o confronto. Ele não pode “fugir” ou esperar um momento mais seguro para intervir. Segundo, a neurociência comprova que, em situações de alto estresse, o cérebro prioriza ações imediatas baseadas em treino e reflexos condicionados. Policiais são expostos a riscos extremos e precisam decidir entre agir ou serem alvejados. Terceiro, o policial não enfrenta uma discussão trivial, mas sim ameaças potencialmente letais. Enquanto um motorista geralmente tem controle da situação, um policial atua em cenários imprevisíveis, onde qualquer hesitação pode custar sua vida ou a de terceiros.
A política de uso progressivo da força, adotada mundialmente por polícias treinadas, prevê que a resposta do policial precisa ser proporcional à ameaça percebida no momento. Se um motorista inicia uma briga de trânsito, ele não está lidando com um criminoso armado, não é treinado para lidar com ameaças e não está inserido em um contexto de atuação profissional onde sua vida e a de outros dependem da decisão tomada.
Outro fator crítico é o risco de julgamentos baseados exclusivamente em vídeos de câmeras corporais (BWCs). Estudos do National Institute of Justice (2018) e do Police Executive Research Forum (2023) indicam que gravações podem criar a falsa impressão de que capturam toda a realidade, quando, na verdade, o ângulo da câmera limita a percepção real do agente. O policial pode perceber ameaças fora do campo de visão da BWC. O estudo The Eyes Have It! (2022) demonstrou que o campo de visão humano é muito mais amplo do que o captado pelas câmeras, criando distorções na avaliação dos eventos.

Além disso, a câmera não grava o que o policial sentiu ou percebeu no momento. Um vídeo pode registrar um suspeito aparentemente calmo, mas não revela expressões, olhares, respiração acelerada, movimentos bruscos e outros sinais de ameaça que o policial identificou. Isso leva ao fenômeno da visão 20/20 retrospectiva, em que um espectador, assistindo a um vídeo depois do ocorrido, não sente o estresse da situação real e julga as ações do policial sem considerar a urgência do momento.

A Suprema Corte dos EUA, em Graham v. Connor (1989), reforçou que nenhum julgamento deve ser feito como se o policial tivesse o benefício de analisar a situação com calma e racionalidade depois do ocorrido. O policial age com as informações e percepções disponíveis no exato momento da ameaça, sem o privilégio da revisão cuidadosa que um espectador de vídeo possui.
A discussão sobre o impacto do estresse na ação policial não é uma tentativa de justificar abusos, mas sim de garantir julgamentos justos e fundamentados na ciência. Ignorar esses fatores pode levar a conclusões errôneas que prejudicam tanto policiais quanto a própria justiça. A tomada de decisão sob estresse em operações policiais é um fenômeno amplamente estudado e validado, diferentemente de um motorista em uma briga de trânsito, cuja reação não é objeto de estudos científicos na mesma profundidade.
Portanto, qualquer avaliação sobre o uso da força deve considerar o contexto da decisão, as condições reais da ocorrência, a resposta neurobiológica ao estresse e a responsabilidade funcional do policial. A simples comparação com um cidadão comum em um conflito de trânsito desconsidera essas variáveis e compromete a análise justa dos fatos.

O treinamento não deveria ser suficiente para controlar a reação por instinto de um PM? Para evitar, por exemplo, o risco de um “atira primeiro e pergunta depois”?
O treinamento policial é fundamental, mas não elimina completamente os efeitos do estresse e da incerteza. A ciência policial não é uma ciência exata, mas sim aplicada, ajustando-se constantemente a novos desafios e realidades operacionais. Como evidenciado por Sid Heal em Field Command e reforçado pelo estudo do FBI (1997) – In the Line of Fire, policiais enfrentam situações de alto risco e tempo crítico, nas quais a tomada de decisão ocorre em frações de segundo.
Estudos analisados pelo FBI (1997) demonstram que, em incidentes de agressão a policiais, os fatores inesperados, a percepção de ameaça e o tempo reduzido para reagir são determinantes na resposta do agente. Mesmo policiais altamente treinados, ao serem atacados, apresentam respostas automáticas baseadas no treinamento e nos reflexos condicionados, mas não possuem controle absoluto sobre todas as variáveis de uma ocorrência real.
As ocorrências policiais são caracterizadas por tempo crítico, alto risco, potencial de consequências graves, impacto da dimensão humana e ambiente incerto
Conforme apontado por especialistas como Lewinski et al. (2023) e DeCarlo, Dlugolenski e Myers (2024), a tomada de decisão sob estresse extremo pode ser influenciada por quatro fatores principais. Treinamento, condiciona respostas eficazes, mas não cobre todas as variáveis do mundo real. Educação, amplia a capacidade de análise de risco e tomada de decisão baseada em princípios legais e técnicos. Experiência prática, policiais mais experientes identificam padrões de comportamento que indicam ameaças potenciais. Consciência situacional, habilidade de interpretar rapidamente o contexto operacional, considerando fatores ambientais e linguagem corporal do suspeito. Muitos modelos acadêmicos e políticos sugerem que um treinamento intenso deveria eliminar reações instintivas. No entanto, o estudo do FBI (1997) com policiais que sobreviveram a agressões violentas mostra que até os mais preparados podem ser surpreendidos e obrigados a reagir sob impulso, devido à ameaça iminente. O estudo do FBI analisou casos onde policiais foram atacados sem aviso prévio. Um exemplo semelhante ocorreu na 2ª CIA do 7º BPM/M, em São Paulo, em 29 de setembro de 2024. Durante a madrugada, um indivíduo invadiu uma base policial e, ao avistar a equipe, gritou ameaças e sacou uma faca para atacar os policiais. Sem tempo para hesitação, os policiais efetuaram disparos para conter a agressão e proteger suas vidas.
Esse tipo de ocorrência ilustra o que o FBI (1997) classifica como “ataques sem tempo para avaliação”, onde o policial não pode se dar ao luxo de questionar antes de agir. Se ele hesita, pode ser morto.

Nos meus 35 anos de experiência, incluindo treinamentos em diversas forças policiais no Brasil e no exterior, jamais vi qualquer curso que ensine ou incentive a ideia de “atirar primeiro e perguntar depois”. Pelo contrário, todos os programas de formação e aperfeiçoamento enfatizam o uso proporcional da força, a correta identificação de ameaças e a legalidade da ação policial.

Os estudos do FBI (1997) e de Horn et al. (2023) reforçam que a decisão de disparar não é impulsiva ou negligente, mas sim condicionada pelos fatores operacionais e de autopreservação. A atuação policial exige flexibilidade, preparo técnico e adaptação às circunstâncias imprevisíveis. A análise das ações policiais deve considerar o contexto real da ocorrência, os fatores humanos e as variáveis operacionais envolvidas, evitando julgamentos simplistas baseados na visão retrospectiva dos eventos.
Os estudos indicam que o treinamento reduz erros, mas não pode garantir que todas as respostas serão perfeitas sob extremo estresse. Portanto, a discussão sobre reações instintivas precisa ser feita com base em evidências científicas, e não em narrativas simplistas que ignoram a complexidade do uso da força policial.

Se cometer um erro de avaliação, como ao confundir um guarda-chuva com uma arma, por exemplo, um PM não deve ser julgado como qualquer outro profissional?
A análise de erros de avaliação policial deve ser conduzida com base em pesquisas científicas que consideram os fatores que influenciam a percepção e a tomada de decisão sob estresse. De acordo com estudos do FBI (1997) – In the Line of Fire, policiais que atuam em situações de alto risco enfrentam distorções perceptivas, como visão de túnel, alteração da percepção do tempo e perda parcial da audição, fenômenos que impactam a interpretação da realidade durante eventos críticos. Essas reações automáticas são documentadas em profissionais que operam sob pressão extrema, como policiais, bombeiros e militares, e devem ser analisadas tecnicamente em qualquer avaliação de erro operacional.
Pesquisas conduzidas por Heal (2021) demonstram que, diante de uma ameaça iminente, o cérebro humano prioriza a autopreservação, ativando respostas automáticas baseadas no treinamento e na experiência. Esses achados reforçam que o julgamento de uma decisão policial deve considerar o ambiente operacional, a velocidade da ação e a percepção do risco no momento do evento, evitando avaliações retrospectivas que desconsideram a urgência da situação real.
O estudo de Fridell (2020) evidencia que a discrepância entre o relato de um policial e as imagens captadas por câmeras corporais não deve ser interpretada como uma falha intencional, mas sim como uma limitação tecnológica e neurológica diante do estresse. As câmeras corporais não registram elementos cruciais da percepção do policial, como sinais verbais, olhares ou micro expressões que indicam um comportamento suspeito. Por isso, avaliações exclusivamente baseadas em vídeos sem o contexto da ocorrência podem levar a interpretações imprecisas.
Os estudos demonstram a importância de compreender esses fenômenos para aprimorar protocolos de capacitação e reduzir ao máximo a ocorrência de mortes ou ferimentos em ações policiais. A busca pelo aperfeiçoamento do treinamento é essencial para minimizar riscos tanto para os agentes da lei quanto para a população, garantindo decisões mais precisas sob pressão.
Um caso prático que exemplifica essa questão ocorreu em Nova Iorque, em 2020, quando um policial, atendendo a uma ocorrência de homem armado após um tiroteio, disparou contra um suspeito que fez um movimento brusco segurando um objeto. A câmera corporal registrou o momento, e inicialmente a narrativa pública sugeriu uso indevido da força.
A investigação revelou que o policial teve menos de um segundo para decidir, em um cenário com diversas pessoas correndo e informações desencontradas sobre atiradores em fuga. O objeto segurado pelo suspeito era uma carteira, e não uma arma, mas devido ao ambiente de tensão e percepção de risco, o policial reagiu com base nas informações disponíveis. Após análise técnica conduzida por especialistas em fatores humanos, concluiu-se que a decisão seguiu os protocolos operacionais para resposta a ameaças percebidas, e o policial foi absolvido.
Estudos indicam que a análise de decisões policiais sob estresse deve ser conduzida de forma científica e técnica, considerando tempo de resposta, percepção da ameaça e informações disponíveis no momento do evento. A avaliação justa e baseada em evidências contribui para o aprimoramento contínuo da capacitação policial, garantindo que estratégias de treinamento evoluam para reduzir ao máximo a necessidade do uso da força letal e aumentar a segurança de todos os envolvidos.

O senhor defende a alfabetização em vídeo para espectadores das imagens captadas pelas câmeras corporais, dizendo, entre outros, que quem vê uma cena precisa também ter “familiaridade com práticas policiais, avaliações de ameaças, técnicas de pacificação e a complexidade do desempenho humano”. Só um PM tem a capacidade de avaliar outro PM?
A questão não é que apenas um policial pode avaliar outro policial, assim como apenas um médico pode avaliar outro médico. O ponto central é que qualquer avaliação técnica e justa exige conhecimento especializado sobre o contexto em que a decisão foi tomada. A análise de ações policiais deve ser conduzida com base em evidências científicas e técnicas, considerando fatores que influenciam a percepção e a tomada de decisão em situações de risco. Estudos como os de Murray et al. (2024) e Turner & Kearon (2019) demonstram que a interpretação de vídeos de câmeras corporais sem conhecimento técnico pode gerar distorções, pois a gravação não reflete integralmente o que o policial percebeu no momento da ação.
A alfabetização em vídeo refere-se à capacidade de interpretar corretamente imagens captadas por câmeras corporais, levando em consideração aspectos como ângulo de gravação, foco visual do policial, distorções de perspectiva e os efeitos do estresse na tomada de decisão. De acordo com o Force Science Institute (2024), a avaliação isolada de imagens pode criar uma falsa sensação de clareza, pois gravações não capturam fatores essenciais, como reações fisiológicas do policial, tempo de resposta real e percepção da ameaça no momento do evento. Essa análise não busca desqualificar aqueles que não possuem conhecimento técnico, mas sim garantir que as imagens sejam examinadas de acordo com as melhores práticas científicas e metodologias empregadas em países que utilizam câmeras corporais há anos. Estudos indicam que, para uma avaliação justa e precisa, é fundamental compreender os seguintes aspectos. Foco e ângulo restrito, porque as câmeras são fixadas no uniforme e não mostram o que o policial realmente viu. O estudo de Murray et al. (2024) demonstrou que elementos fora do enquadramento podem ser cruciais para compreender a ameaça, mas não ficam registrados na gravação. Ausência de percepção sensorial completa, porque câmeras não captam sons periféricos, variações na luminosidade e impactos ambientais sobre o policial. Isso significa que um vídeo pode omitir elementos críticos que influenciaram a tomada de decisão, como ruídos de alerta, movimentações sutis de suspeitos ou mudanças repentinas na dinâmica do ambiente. Efeito da câmera lenta e replay, porque quando espectadores assistem a um vídeo repetidamente, em câmera lenta ou com pausas, há uma tendência a acreditar que o policial teve mais tempo para reagir do que realmente teve. Esse fenômeno, identificado por Turner & Kearon (2019), pode levar a interpretações distorcidas da decisão do agente, ignorando a pressão do tempo real. Desconexão entre o vídeo e a cognição do policial, porque o cérebro humano processa ameaças em tempo real de maneira diferente de quem assiste ao vídeo posteriormente, em ambiente calmo e seguro. Pesquisas do Force Science Institute (2024) destacam que o julgamento de uma gravação assistida sem estresse, sem risco iminente e com conhecimento prévio do desfecho não reflete a realidade da tomada de decisão no momento da ação. Efeito do estresse e decisão sob pressão, porque, de acordo com Kleider-Offutt et al. (2021), o estresse extremo pode impactar a memória operacional, o tempo de resposta e a precisão na avaliação de ameaças. O estudo indica que percepções visuais sob pressão diferem significativamente daquelas feitas em análises retrospectivas, o que reforça a necessidade de considerar fatores neurobiológicos em julgamentos de uso da força.

Assim como médicos recorrem a laudos, exames e especialistas para interpretar um diagnóstico, a avaliação de ações policiais deve contar com peritos em uso da força, psicólogos forenses e especialistas em segurança pública, garantindo que a análise seja feita de forma justa e baseada na ciência.

Portanto, a alfabetização em vídeo não significa que apenas policiais possam analisar gravações, mas sim que qualquer análise deve ser feita com conhecimento técnico adequado. Da mesma forma que a medicina, o direito e a engenharia recorrem a especialistas para avaliar casos complexos, a interpretação de gravações de câmeras corporais precisa levar em conta fatores operacionais, técnicos e cognitivos, garantindo que a análise seja conduzida de maneira justa, imparcial e baseada em evidências científicas.

Em outro artigo, o senhor defende que as situações de estresse acabam por atrapalhar a memória de um PM sobre uma ação na qual esteve envolvido. Isso não pode ser usado como argumento por qualquer pessoa, em qualquer situação, ao ser confrontada na Justiça por causa de um depoimento pouco esclarecedor ou contraditório?
Estudos científicos analisam os impactos do estresse extremo na memória e percepção humana, especialmente em contextos de alta pressão, como enfrentado por policiais durante ocorrências críticas. Essas pesquisas indicam que, sob estresse intenso, o cérebro humano pode priorizar a sobrevivência em detrimento da retenção detalhada de informações, fenômeno descrito como memória fragmentada sob estresse.
De acordo com Fridell (2020) e DeCarlo, Dlugolenski e Myers (2024), situações de ameaça iminente podem gerar distorções perceptivas, incluindo visão de túnel, alteração da percepção do tempo e foco seletivo em estímulos considerados ameaçadores. Essas características são amplamente estudadas na neurociência e documentadas na literatura sobre tomada de decisão sob pressão.
O estudo de Kleider-Offutt et al. (2021) demonstra que, em situações críticas, o estresse elevado pode impactar a memória operacional e a precisão na reconstrução dos eventos, resultando em diferenças entre o relato do policial e registros objetivos, como imagens de câmeras corporais. Essas discrepâncias não são necessariamente intencionais, mas sim decorrentes de limitações cognitivas naturais que afetam todos os seres humanos submetidos a alto nível de estresse.
A questão central levantada em pesquisas não é se erros de memória podem ocorrer, mas sim como o estresse influencia a forma como informações são registradas, processadas e posteriormente recordadas. Essas pesquisas não têm a intenção de justificar erros ou eximir responsabilidade, mas sim compreender as limitações da memória humana e os desafios enfrentados por profissionais em situações de risco extremo.
Os estudos sobre estresse e percepção em ocorrências policiais não são amplamente replicados na literatura que aborda civis em situações comuns de julgamento, pois há diferenças fundamentais entre a atuação policial e o contexto civil. Profissionais que operam sob risco constante desenvolvem padrões específicos de resposta cognitiva, conforme analisado por Gary Klein (1998) em “Fontes do Poder”, onde ele estuda como a experiência e o contexto moldam a tomada de decisões rápidas.
Além disso, Kahneman (2011), em “Rápido e Devagar”, discute como a mente opera sob pressão, diferenciando processos automáticos e deliberativos. Essas distinções são essenciais para entender que um policial em confronto lida com estímulos diferentes de um civil em um ambiente cotidiano, o que influencia sua percepção e capacidade de memorização dos fatos.
A Dra. Lorie Fridell, professora emérita da Universidade do Sul da Flórida e ex-diretora de pesquisa do Police Executive Research Forum (PERF), destaca que discrepâncias entre relatos policiais e imagens captadas por câmeras corporais não devem ser automaticamente interpretadas como falhas ou omissões intencionais, mas sim como um reflexo das limitações da memória humana sob estresse e das limitações da tecnologia.
Os estudos indicam que a análise técnica do uso da força e da memória policial sob estresse não ignora a necessidade de responsabilização, mas enfatiza que qualquer julgamento deve considerar fatores operacionais, pesquisas sobre percepção humana e os desafios do contexto policial.
Conforme destacado no Seminário da Associação de Oficiais Táticos dos EUA, que avaliou dez anos de uso de câmeras corporais, as gravações não substituem integralmente o testemunho do policial, pois não capturam elementos como tensão fisiológica, ameaças percebidas e a carga cognitiva no momento do evento.

A questão não é se um policial pode ter falhas de memória, mas sim se sua decisão foi razoável dentro das condições do momento da ocorrência. A literatura científica não relativiza a responsabilização, mas enfatiza que qualquer julgamento deve considerar fatores como tempo de resposta, percepção de risco e efeitos da resposta neurobiológica ao estresse.

Portanto, essas pesquisas não defendem a ideia de que qualquer pessoa pode invocar o estresse como justificativa genérica na Justiça, mas sim que o contexto de decisões sob pressão deve ser analisado tecnicamente.

O que o senhor diria a quem vê as suas justificativas em relação às câmeras e ao estresse como uma forma de amenizar o julgamento sobre eventuais falhas ou excessos cometidos por parte dos policiais?
Os estudos científicos sobre o uso de câmeras corporais e o impacto do estresse na tomada de decisão policial não buscam minimizar falhas ou justificar excessos, mas sim garantir que avaliações sejam realizadas com base em critérios técnicos e imparciais. Essa abordagem tem sido respaldada por dezenas de artigos acadêmicos e decisões judiciais que analisam a percepção do policial no momento da ação e os efeitos do estresse extremo na cognição humana.
A literatura internacional sobre câmeras corporais tem abordado suas limitações tecnológicas e o impacto sobre a percepção dos eventos, mas no Brasil, os estudos sobre o tema estão majoritariamente focados na redução ou não da letalidade policial e na implementação da tecnologia, e não na análise das diferenças entre as câmeras e a percepção humana do operador. Isso significa que há uma lacuna na compreensão científica sobre como esses dispositivos influenciam a interpretação dos eventos policiais, o que torna fundamental que as gravações sejam analisadas com rigor técnico e científico.
Pesquisas realizadas por Murray et al. (2024) e DeCarlo, Dlugolenski e Myers (2024) indicam que as imagens captadas por câmeras corporais não refletem integralmente a percepção visual do policial durante uma ocorrência. Enquanto o agente em campo possui visão periférica, percepção tridimensional e processa simultaneamente estímulos auditivos e táteis, a câmera registra apenas um recorte bidimensional do cenário, sem captar os processos cognitivos envolvidos na tomada de decisão.
Além disso, estudos do Force Science Institute (2024) demonstram que, em situações de alto estresse, o cérebro humano pode modificar a percepção do tempo e da ameaça, ativando reações instintivas focadas na autopreservação. Esse fenômeno pode resultar em diferenças entre o relato do policial e as imagens gravadas, não porque a filmagem seja imprecisa, mas porque ela representa apenas uma parte da realidade vivenciada pelo operador no momento da ação.
No Seminário da Associação de Oficiais Táticos dos EUA, que analisou dez anos de uso de câmeras corporais, especialistas demonstraram que as gravações podem tanto confirmar uma ação legítima quanto sugerir um erro, dependendo da forma como são interpretadas. Em diversos casos analisados no evento, havia forte convicção inicial de que a ação policial estava dentro do protocolo, mas uma revisão mais detalhada revelou uso excessivo da força.
Por outro lado, em outros casos, gravações que aparentemente indicavam erro policial foram reavaliadas e comprovaram que os agentes agiram conforme os protocolos estabelecidos. Esse fenômeno evidencia que as câmeras podem ser o melhor ou o pior advogado do policial, pois sua interpretação depende do contexto, da análise técnica e do conhecimento sobre os fatores que influenciam a tomada de decisão sob pressão.
Estudos como os de Turner & Kearon (2019) demonstram que, ao assistir a um vídeo com conhecimento prévio do desfecho, há uma tendência a acreditar que o policial deveria ter previsto o resultado, desconsiderando o tempo real disponível para agir. Esse viés retrospectivo pode influenciar julgamentos se a gravação for analisada sem considerar as limitações perceptivas do operador, os efeitos do estresse e a urgência da decisão no momento da ação.
A Suprema Corte dos EUA, em Graham v. Connor (1989), já estabeleceu que ações policiais devem ser avaliadas com base na perspectiva do agente no momento da ocorrência, e não com a “visão 20/20 da retrospectiva”. Isso significa que qualquer julgamento sobre o uso da força precisa levar em conta os elementos disponíveis para o policial na fração de segundo em que tomou a decisão.

A defesa de uma análise criteriosa das gravações não busca encobrir falhas policiais, mas garantir que cada caso seja avaliado com imparcialidade e responsabilidade. O objetivo é assegurar que nenhuma gravação seja usada de forma isolada como única evidência sem considerar relatos de testemunhas, análise pericial e estudo dos fatores neurobiológicos que influenciam a percepção do policial sob estresse.

Portanto, as câmeras corporais são uma ferramenta essencial para a transparência policial, mas seu uso deve ser complementado por avaliações técnicas que evitem interpretações enviesadas ou simplificadas. Assim, assegura-se que a justiça seja aplicada de forma equilibrada e baseada na ciência, e não apenas em uma única perspectiva da realidade captada por um dispositivo.

 

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