Lugar que cala ou branquitude que dita?

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Já sei que muita gente vai estranhar o termo “branquitude”, porque pessoas brancas não estão acostumadas a se perceber como racializadas. No Brasil, a racialização sempre recaiu sobre negros, indígenas e asiáticos, enquanto a branquitude se colocou como o padrão neutro, universal e não marcado. E é exatamente essa a questão: a branquitude opera de maneira invisível para quem a ocupa, mas estruturalmente determinante para quem dela está à margem.

Maria Rita Kehl escreveu um artigo intitulado Lugar Que Cala e reforçou tal reflexão no programa Dando a Real com Demori, exibido na TV Brasil no dia 4/2/2025. Nele, reafirma um discurso que atravessa mais de 500 anos de história colonial: o da branquitude determinando quem pode falar, sobre o quê e sob quais condições. Sua crítica aos movimentos identitários não é nova, mas ecoa o incômodo que sempre aparece quando os grupos historicamente silenciados criam suas próprias redes e recusam a mediação branca como condição para existência.

No artigo e na entrevista, a psicanalista afirma que os movimentos identitários não produzem laços sociais, pois se fecham para a crítica e para o diálogo. Mas essa é uma afirmação que exige uma pergunta: que tipo de laço social estamos falando? Os movimentos negros, indígenas e periféricos, por exemplo, sempre construíram laços comunitários, redes de afeto, espaços de escuta e resistência. O que Kehl parece estar dizendo, na verdade, é que esses grupos não produzem laços com a branquitude—e esse, ao que tudo indica, é o problema para ela.

O branco sempre foi o único autorizado a falar de si e dos outros. Historicamente, a branquitude nunca se enxergou como identidade, mas como o centro neutro e universal a partir do qual tudo mais deveria ser referenciado. A própria concepção de raça foi criada para classificar os outros e definir seus lugares no mundo. O branco nunca se percebeu como racializado porque sempre ocupou a posição de quem nomeia, de quem define e de quem classifica. Quando Kehl diz que os movimentos identitários se fecham para a crítica, é preciso perguntar: de quem? Ela está preocupada com a ausência de debate ou com a perda do controle sobre ele?

A branquitude e seu universalismo seletivo

Outro ponto que merece atenção no artigo de Kehl é a forma como ela define os movimentos identitários como “nichos narcísicos”, acusando-os de só dialogarem entre si. Mas não há nada mais identitário e narcísico do que a branquitude. Como explicar, por exemplo, que o Brasil seja o segundo maior país negro do mundo, mas sua elite econômica, política e acadêmica continue sendo majoritariamente branca? Como justificar que os espaços de poder permaneçam inacessíveis para a maioria da população?

Esse poder é exercido de forma tão estruturante que nem precisa ser verbalizado. Ele opera na exclusão, no privilégio silencioso, na ideia de que a branquitude é o padrão neutro, enquanto os demais grupos são nichos que precisam justificar sua existência. Kehl ignora o fato de que a branquitude sempre viveu em seu próprio nicho, reforçando seus próprios valores, suas estéticas, suas epistemologias e suas redes de influência. Fechado para quem não pertence.

Quando a autora menciona que “uma mulher branca de classe média pode criticar um homem negro que está espancando um filho”, ela reduz toda uma discussão complexa a um exemplo de violência individual, sem nenhuma contextualização histórica ou social. Como se a questão racial pudesse ser reduzida a um debate sobre boas e más condutas individuais. Mas será que essa mesma crítica se aplica quando falamos da violência do Estado, que historicamente massacra pessoas negras? Será que Kehl se incomoda com a falta de brancos denunciando a violência policial que extermina meninos negros nas periferias

Se um homem negro espanca um filho, ele está cometendo um crime. Se um policial branco atira em um jovem negro desarmado, ele está exercendo “o seu trabalho”. Onde está a crítica de Kehl para esse tipo de assimetria? O que ela faz é usar um caso isolado para justificar um discurso que, no fundo, tenta apenas reafirmar a centralidade da voz branca como parâmetro de universalidade e trazendo, mais uma vez, um lugar de violência na vivência negra.

Diálogo para quem?

O artigo de Kehl sugere que os movimentos identitários não querem diálogo. Mas diálogo com quem? E em quais termos? Historicamente, o que sempre existiu foi um monólogo branco. O que incomoda a autora não é que esses grupos se recusem a dialogar, mas sim que agora eles escolhem as condições desse diálogo. Escolhem onde falar, com quem falar e de que forma falar.

Esse discurso de que a crítica branca deve ser aceita para que os movimentos não “se fechem em si mesmos” já foi usado diversas vezes. Disseram o mesmo para os movimentos feministas, para os movimentos indígenas, para as lutas LGBTQIA+. A lógica é sempre a mesma: quando um grupo historicamente oprimido ganha voz e decide estabelecer seus próprios parâmetros, a branquitude se inquieta e se apressa em dizer que isso não “vai muito longe”. Mas vai. Está indo. E sem precisar da aprovação da academia branca para isso.

O que Kehl parece ignorar é que o conceito de “lugar de fala”, tão mal interpretado por quem quer reduzir o debate, não significa que brancos não podem falar. O que significa é que toda fala é georreferenciada, tem uma posição social, um recorte de classe, gênero e raça. O conceito de lugar de fala existe justamente porque, durante séculos, a única voz considerada legítima foi a branca. Esse debate não é sobre silenciar, mas sobre equilíbrio de forças.

Se há algo que precisa ser dito com clareza, é que os movimentos negros, indígenas e periféricos não estão negando a existência do diálogo, mas sim recusando a velha dinâmica onde a branquitude determina os termos da conversa. O que Kehl chama de “nichos narcísicos” são, na verdade, espaços de autonomia. Espaços onde o conhecimento se constrói de forma coletiva, sem precisar da chancela de quem historicamente nos negou voz e sempre foi o algoz.

O que incomoda não é a falta de diálogo. O que incomoda é que o monopólio do discurso não está mais nas mesmas mãos de sempre.

 

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