O último não-vacinado
Naquela segunda-feira, B. vestiu suas máscaras e saiu para trabalhar. Mas havia algo errado com seu passaporte.. B. abriu os olhos exatamente às 6 horas, como fazia sempre, mas estranhou o fato de que o alarme do celular não tocou naquela segunda-feira. No domingo houvera uma confraternização virtual com os colegas de trabalho, e B. tinha tomado umas cervejas a mais.
Nada que um bom café automático não resolvesse. Dirigiu-se até a cafeteira instalada na cozinha-sala de sua máquina de morar, mas o equipamento surpreendentemente recusou-se a funcionar.
Resignado, B. lavou o rosto com água fria, escovou os dentes, fez a barba, colocou a roupa de trabalho e vestiu as duas máscaras com a marca do Partido. Como o elevador demorasse muito a chegar, B. resolveu descer os nove andares pelas escadas. “É até bom, assim faço exercício”, pensou.
Deu bom-dia ao porteiro, que não respondeu. Caminhou uns metros sentindo o vento da manhã no rosto. Sentia-se faminto, precisava pelo menos tomar uma xícara de café e comer um pão com manteiga antes de entrar na repartição. Assim que B. colocou os pés na padaria da esquina, o alarme sonoro-luminoso do Coletivo de Saúde Pública soou de maneira aguda e torturante. Todos os olhares ― dos fregueses, dos funcionários e do agente municipal de plantão ― se voltaram para ele: sentiu-se alvejado por várias expressões simultâneas de impaciência e raiva.
Uma senhora vestida com escafandro mandetta disse pelo buraco da fala:
― É por causa disso que o país não vai pra frente.
Uma garota de cabelos azuis, com máscara marielle, que carregava nos braços completamente tatuados um pincher trêmulo, comentou da fila do caixa:
― Depois de tudo, esses negacionistas ainda têm coragem…
B. desistiu de entrar na padaria e já se encaminhava para a estação de ônibus, quando foi alcançado pelo agente municipal.
― Pera aí, cidadão! Aonde é que vai com tanta pressa?
― Vou trabalhar, ué. Não está vendo minhas máscaras? Sou aprovado pelo Partido.
― E você acha que o Partido vai te deixar entrar no local de trabalho nessas condições?
― Em que condições, companheiro?
― Não me chama de companheiro. Eu lá sou companheiro de fascista? Pra você, eu sou Agente Sá.
― Tudo bem. O senhor me desculpe, Agente Sá. Mas qual é o problema comigo?
― Ué, ficou surdo e cego ao mesmo tempo? Você acha que pode sair assim, sem mais nem menos, depois de negar vacina?
― Mas eu não neguei vacina! O meu passaporte está rigorosamente em dia. Tomei todas as últimas 21 doses, dentro da minha escala. Posso provar, é só ver meu QR-Code.
B. colocou a mão no bolso da jaqueta, tirou o celular e, em desespero, viu que a tela estava completamente apagada.
Sá conduziu B. até a viatura e colocou nele uma tornozeleira antiminion. Entrou em contato com a Central do Coletivo e enviou pelo sistema os dados biométricos de B.
― Realmente, parece que você está vacinado contra a Covid-30. Mas tem um probleminha. Detectaram outra infecção em você.
Então, subitamente, B. se lembrou. No meio da festa virtual, quando conversava com Sandra, a bela psicóloga do Departamento Pessoal, já meio zonzo de cerveja, ele dissera com um sorriso:
― Até que a vida não era tão ruim assim no tempo dos milicianos…
Para aquele comentário ― B. sabia ― jamais houve nem haverá vacina.
Por Paulo Briguet é cronista e editor-chefe do BSM.